
Vínculos que criamos
28 de abril de 2020Quando falamos em Fáscia, vem sempre uma pergunta:
– Fáscia é tudo?
Não. Fáscia é um tecido, como vários outros tecidos corporais. Ela faz parte do Sistema Fascial, que tem a função de interligar todos os outros sistemas do corpo. Isso forma uma grande rede de comunicação capaz de transmitir informações em alta velocidade, cerca de 1000 vezes mais rápida que a velocidade de transmissão de um estímulo neural por uma fibra mielinizada.
A fáscia foi, por muito tempo, negligenciada no estudo das ciências de base, como a anatomia. A forma de conservar a peça anatômica, muitas vezes pelo formol, deteriora esse tecido. Além disso, uma prática comum em laboratórios de anatomia consistia em “limpar” o cadáver para se ter uma visualização mais nítida das estruturas anatômicas corporais. Nessa prática, retirava-se grandes quantidades de tecido fascial, como se esse tecido não tivesse muita importância. Com a evolução tecnológica foi possível analisar a nível microscópico e macroscópico esse tecido, demonstrando sua devida importância para as funções do organismo. Estudos em indivíduos vivos com câmeras de ampliação conseguiram alavancar o interesse da ciência nesse tecido.
Ao longo das últimas décadas, diferentes conceitos/perspectivas foram apresentados para o estudo e a compreensão das disfunções corporais, e das capacidades adaptativas do indivíduo. Uma dessas perspectivas se refere às fáscias.
– Mas o que é fáscia?
A nomenclatura e o significado da palavra fáscia tem sido discutida entre grupos de pesquisadores no mundo, sem apresentar um consenso. Nós, na ABFascias, consideramos a fáscia como um tecido derivado do tecido de interior (ou mesenquimal), bem definido anatomicamente, que envelopa, interliga e dá forma para as estruturas corporais. Outro conceito importante – a ainda mais abrangente – é o de Sistema Fascial, que consiste no tecido conjuntivo que interage todos os sistemas corporais e participa ativamente das reações metabólicas (inclui tecidos não definidos anatomicamente, como tecido conjuntivo frouxo, derme, tecido conjuntivo intraósseo, perimísio, endomísio, envoltórios tendinosos, sangue e linfa).
Um aspecto fundamental presente nesses conceitos é a interação. Como nosso corpo é um sistema complexo, essas interações ocorrem de forma não linear, produzindo um desfecho que não é previsível a partir da soma das partes. Para que possamos olhar nessa perspectiva complexa e ampla do sistema fascial, é necessário um modelo de avaliação. Assim, desenvolvemos o modelo de avaliação da complexidade, construído dentro das bases sólidas da filogenética, embriologia, anatomia, histologia e neurofisiologia. Trata-se de um modelo “inclusionista”, que inclui mesmo os modelos que se baseiam em um sistema metodológico linear e cartesiano. Chamamos esse modelo de “Modelo Neurofascial da Complexidade”. Nele, fatores biomecânicos, neurológicos, circulatórios/respiratórios, metabólicos, emocionais, ambientais, bioenergéticos e fasciogênicos interagem de uma forma não-linear e complexa, resultando em um desfecho não previsível, que corresponde à alostasia/saúde do sistema.
Um grande desafio ao estudarmos a fáscia e o sistema fascial é compreender esse Sistema Complexo. Estamos muito atrelados a uma forma linear de ver a vida, buscando sempre respostas diretas do “por que” de tudo. Procuramos fórmulas com respostas universais que nos permitam avaliar as situações sobre a ótica da causa/efeito. Historicamente isso pode ser explicado pelos grandes benefícios do pensamento linear (construído por Descartes e embasado em conceitos da matemática newtoniana), que conseguiu impulsionar a revolução industrial, tecnológica e da medicina. É inegável o grande benefício desses conceitos para a humanidade, para o aumento da expectativa de vida e para uma maior possibilidade de ocupação de todos os ambientes terrestres. As aquisições da ciência linear foram também importantes para que a área médica pudesse intervir com eficiência em problemas na fase aguda.
Porém, essa mesma eficiência não é vista ao lidar com problemas crônicos e relativos à qualidade de vida das pessoas. Nesse casos, o olhar segmentar e linear do paradigma cartesiano se torna inapropriado. Nos últimos anos, tem crescido o uso do termo Complexidade para explicar fenômenos como dor crônica, fibromialgia, doenças cardiovasculares dentre outros. Ao mesmo tempo, o avanço do estudo da fáscia in-vivo e com ampliação demostra que esse tecido apresenta um padrão de comportamento caótico e responde a leis não-newtonianas. Seu padrão comportamental é dinâmico e não previsível, estabelecendo uma comunicação de todo o corpo, não apresentando limites de começo e fim.
Nesse contexto, uma característica fundamental do sistema é a adaptabilidade. O organismo busca sempre o equilíbrio dinâmico com o menor gasto energético possível. Reconhecemos assim que o conhecimento do sistema fascial e da ótica dos sistemas complexos pode nos ajudar a compreender as pessoas, e também a vida, de uma forma que se aproxima mais da leis do Universo. Seja bem vindos a ABFascias!
Texto escrito pelos professores Leonardo Sette e Cristiano Guimarães.